Bem, hoje eu vou contar uma parte muito importante da minha história, filha; agora com sua idade você já tem uma capacidade de entender e absorver o quão mágico pode ser o mundo, o que move algumas relações e que sim, grandes transformações palpáveis, mesmo depois de anos, podem acontecer! Acredite, isso que você está sentindo aí, vai passar e ainda terá uma história surpreendente no futuro pra você contar.
Lívia, quando eu tinha 10 anos de idade uma enfermidade de cunho genético chamado ceratocone se agravou rapidamente e eu fiquei um tempo da minha vida sem enxergar praticamente, nada. Um tempo, assim... Mais precisamente anos! 8 anos. Eu só via tons e borrões. E isso só mudou em um período próximo a quando eu vivi a coisa mais fantástica e louca da vida, que foi quando eu me apaixonei por alguém.
Bem, quando eu era adolescente, umas amigas e eu fomos a uma viagem no período das férias para um interior onde morava a avó da sua madrinha Ana. Murilo, irmão dela, também levou alguns amigos e logo juntamos a turma para nos divertirmos. Eu não enxergava ainda, então me descreviam alguns lugares e pelo cheiro, textura, sons, como também, pelas cores fortes, eu podia ver na minha memoria, na minha criatividade em montar cenários, o que estava a minha frente ali.
Tomamos banho de rio no primeiro dia! O céu estava em tons de azul pincelado com rosa e ao meu ver, posso afirmar: estava lindo! [Risos] E foi nesse dia que encontrei o garoto que eu me apaixonaria, só tinha um detalhe: Ele não falava. A sua enfermidade era ser mudo. Mas ele ouvia e tocava divinamente bem.
Nos apresentaram. Eu o senti num aperto de mão, no cheiro quando próximo (e ele cheirava muito bem!), no jeito que falavam dele, dava pra saber a "vibe". Ele começara a tocar e eu fiquei encantada, foi ruim disfarçar e ele certamente viu. Eu me perguntava: será que ele não só viu, mas realmente entendeu isso?
No outro dia seguimos comendo juntos, tomando banho de chuva, contando histórias sinistras em meio a uma fogueira improvisada; ouvindo músicas, cantando e ele com aquele violão que não saia da cola dele. Resolvemos dormir ali mesmo. Acampar. Fomos a casa da Vó Miranda, pegamos o que precisávamos e voltamos pra dormir pertinho de uma árvore, que ficava não muito longe, do rio.
No meio da noite eu estava meio inquieta e saí para fumar. Pois é... Eu já fumei. Mas não repita isso, não vale nada! Era só bobagem da falta que fazia algo que bem, eu mudei com a terapia, filha. Mas isso é outra história. Continuando... Ele estava lá. Pertinho da fogueira ainda, eu sabia disso porque estava tocando. Eu me aproximei e não soube o que dizer. Como dizer... Ele percebeu, me tocou com duas batidas no violão diferentes e repetiu a freqüência no meu ombro. Firme, mais acolhedora. Então... Ele tocava algo e parecia falar. Sim! Ele falava por meio de melodias. Eu podia ouvir! Aqueles solos eram frases, as notas se uniam e formavam palavras e de repente naquela conexão louca, eu falei pra ele músicas que eu gostava de ouvir e ele tocou. Entendi que ele realmente estava em sintonia comigo e fluímos no mesmo ritmo por sei lá quantas horas... Riamos. E depois eu colocava em sinceridade e palavras o que eu estava vendo pelo meu coração e ouvidos, acontecer. Ele confirmava e opinava ao me enxergar, ler a coerência no meu corpo, me traduzir também e falar por meio do seu violão.
Ah Lívia... Foi lindo! E a gente acabou se tocando algumas vezes para sentir algumas certezas de coisas que a gente não sabia dizer, a não ser por meio desse instrumento que era nós mesmos em linguagem corporal. Foi no desdobrar disso que a gente se beijou e continuou, e eu vi o sol nascer, ao sentir o calor do dia nas minhas costas. Amanheci com aquele garoto que nada falava objetivamente, mas muito me dizia.
Nos recolhemos antes que os outros acordassem. Continuamos o nosso passeio com a turma mais dois dias e deixamos escapar a nossa comunicação. Nossos amigos ficaram espantados, porque eles não entendiam como poderíamos tão bem nos comunicar quando sozinhos e daquela maneira. Depois desses dias, voltei para capital. Ele ficou... E se tornou aquele amor de verão, sabe? Mas continuou pulsante guardado com carinho dentro de mim, porque aqueles dias tinham sido mágicos! Afinal, a gente se permitiu ir além do que poderíamos realizar com nossas limitações físicas, porque não fomos restringidos a isso. O sensorial, a mente... essa sensibilidade, o querer, nos permitiu tudo!
Um ano depois disso, realizei uma cirurgia de transplante de córneas, que me trouxe a visão por meio dos olhos novamente! Que felicidade!! Antes eu era professora de dança! E depois disso, você já sabe: Entrei para companhia de teatro e faço cenários! Como amo isso e tantas coisas mais que agora posso enxergar...
Montando uma peça, certo dia, olha só a coincidência, ouvi alguém tocar divinamente bem para umas cenas, e era ele. Ele me reconheceu! E pelo olhar feliz dele, como também as duas batidas firmes e acolhedores, a gente se cumprimentou e sorriu largamente.
Daí surgiu uma nova história, linda e foi aí que depois veio você.
Daí surgiu uma nova história, linda e foi aí que depois veio você.