domingo, 26 de abril de 2020

Mil melodias, uma só linguagem

Bem, hoje eu vou contar uma parte muito importante da minha história, filha; agora com  sua idade você já tem uma capacidade de entender e absorver o quão mágico pode ser o mundo, o que move algumas relações e que sim, grandes transformações palpáveis, mesmo depois de anos, podem acontecer! Acredite, isso que você está sentindo aí, vai passar e ainda terá uma história surpreendente no futuro pra você contar. 

Lívia, quando eu tinha 10 anos de idade uma enfermidade de cunho genético chamado ceratocone se agravou rapidamente e eu fiquei um tempo da minha vida sem enxergar praticamente, nada. Um tempo, assim... Mais precisamente anos! 8 anos. Eu só via tons e borrões. E isso só mudou em um período próximo a quando eu vivi a coisa mais fantástica e louca da vida, que foi quando eu me apaixonei por alguém. 

Bem, quando eu era adolescente, umas amigas e eu fomos a uma viagem no período das férias para um interior onde morava a avó da sua madrinha Ana. Murilo, irmão dela, também levou alguns amigos e logo juntamos a turma para nos divertirmos. Eu não enxergava ainda, então me descreviam alguns lugares e pelo cheiro, textura, sons, como também, pelas cores fortes, eu podia ver na minha memoria, na minha criatividade em montar cenários, o que estava a minha frente ali. 

Tomamos banho de rio no primeiro dia! O céu estava em tons de azul pincelado com rosa e ao meu ver, posso afirmar: estava lindo! [Risos] E foi nesse dia que encontrei o garoto que eu me apaixonaria, só tinha um detalhe: Ele não falava. A sua enfermidade era ser mudo. Mas ele ouvia e tocava divinamente bem. 

Nos apresentaram. Eu o senti num aperto de mão, no cheiro quando próximo (e ele cheirava muito bem!), no jeito que falavam dele, dava pra saber a "vibe". Ele começara a tocar e eu fiquei encantada, foi ruim disfarçar e ele certamente viu. Eu me perguntava: será que ele não só viu, mas realmente entendeu isso?

No outro dia seguimos comendo juntos, tomando banho de chuva, contando histórias sinistras em meio a uma fogueira improvisada; ouvindo músicas, cantando e ele com aquele violão que não saia da cola dele. Resolvemos dormir ali mesmo. Acampar. Fomos a casa da Vó Miranda, pegamos o que precisávamos e voltamos pra dormir pertinho de uma árvore, que ficava não muito longe, do rio.  

No meio da noite eu estava meio inquieta e saí para fumar. Pois é... Eu já fumei. Mas não repita isso, não vale nada! Era só bobagem da falta que fazia algo que bem, eu mudei com a terapia, filha. Mas isso é outra história. Continuando... Ele estava lá. Pertinho da fogueira ainda, eu sabia disso porque estava tocando. Eu me aproximei e não soube o que dizer. Como dizer... Ele percebeu, me tocou com duas batidas no violão diferentes e repetiu a freqüência no meu ombro. Firme, mais acolhedora. Então... Ele tocava algo e parecia falar. Sim! Ele falava por meio de melodias. Eu podia ouvir! Aqueles solos eram frases, as notas se uniam e formavam palavras e de repente naquela conexão louca, eu falei pra ele músicas que eu gostava de ouvir e ele tocou. Entendi que ele realmente estava em sintonia comigo e fluímos no mesmo ritmo por sei lá quantas horas... Riamos. E depois eu colocava em sinceridade e palavras o que eu estava vendo pelo meu coração e ouvidos, acontecer. Ele confirmava e opinava ao me enxergar, ler a coerência no meu corpo, me traduzir também e falar por meio do seu violão. 

Ah Lívia... Foi lindo! E a gente acabou se tocando algumas vezes para sentir algumas certezas de coisas que a gente não sabia dizer, a não ser por meio desse instrumento que era nós mesmos em linguagem corporal. Foi no desdobrar disso que a gente se beijou e continuou, e eu vi o sol nascer, ao sentir o calor do dia nas minhas costas. Amanheci com aquele garoto que nada falava objetivamente, mas muito me dizia.  

Nos recolhemos antes que os outros acordassem. Continuamos o nosso passeio com a turma mais dois dias e deixamos escapar a nossa comunicação. Nossos amigos ficaram espantados, porque eles não entendiam como poderíamos tão bem nos comunicar quando sozinhos e daquela maneira. Depois desses dias, voltei para capital. Ele ficou... E se tornou aquele amor de verão, sabe? Mas continuou pulsante guardado com carinho dentro de mim, porque aqueles dias tinham sido mágicos! Afinal, a gente se permitiu ir além do que poderíamos realizar com nossas limitações físicas, porque não fomos restringidos a isso. O sensorial, a mente... essa sensibilidade, o querer, nos permitiu tudo!

Um ano depois disso, realizei uma cirurgia de transplante de córneas, que me trouxe a visão por meio dos olhos novamente! Que felicidade!! Antes eu era professora de dança! E depois disso, você já sabe: Entrei para companhia de teatro e faço cenários! Como amo isso e tantas coisas mais que agora posso enxergar... 

Montando uma peça, certo dia, olha só a coincidência, ouvi alguém tocar divinamente bem para umas cenas, e era ele. Ele me reconheceu! E pelo olhar feliz dele, como também as duas batidas firmes e acolhedores, a gente se cumprimentou e sorriu largamente.
Daí surgiu uma nova história, linda e foi aí que depois veio você. 

segunda-feira, 20 de abril de 2020

Somando dois não dá um

Arlete é uma moça bondosa, cheia de amigos e com o amor pulsante dentro de si, mas sofre com um problema crônico de dualidade. Bem, isso quem disse foi um psicólogo, uma astróloga, uma  mãe de santo, a líder de jovens da igreja, alguns amigos, a filosofia e o que mais ela buscou que pudesse falar sobre ela, além dela mesma (é claro).

A questão é que se isso fosse realmente um problema, era na visão dos outros, pois ela gostava da diversidade desde quando era criança. Por exemplo: Ela brincava que era mãe de gêmeos de sexos opostos, porque não conseguia querer ser apenas mãe de um por vez e essa coisa de decidir se seria menino ou menina, por que não ser logo mãe dos dois? Cor preferia? Porque somente uma? Ela amava a coleção de cores completa! Não dava pra ter uma amiga somente também; era muito mais legal ter várias! Profissão... Bem, já falavam disso quando ela era criança e ela experimentou brincando de muitas delas; gostava de ser maquiadora, vendedora, médica, construtora, decoradora, pintora, professora, atriz e o que sua imaginação viesse trazer.

Sua mãe sempre a elogiou por sua criatividade; se mantinha ocupada com o balé, com as aulas de basquete, com os encontros de rodinhas de amigos pra aprender violão; pintava o próprio cabelo, cortava também; cantava; escrevia, calculava... Era repleta de variações e enérgica demais!

Mas chegou um dado momento em sua pré-adolescência que a mãe começou a falar sobre individualidade, singularidade e absorver isso foi muito difícil. Ela aprendeu a teoria. Contudo, pra começar: ela dividia o quarto com dois irmãos, seus pais tinham duas casas porque preferiram morar longe um do outro. (Eles se separaram, depois descobriram que ainda se amavam e queriam continuar, porém a rotina era muito problemática então resolveram viver assim). Com esses exemplos, ela não via como algo ou, alguém sozinho seria bom. 

14 anos recém completados e ela sentiu vontade, finalmente, de beijar alguém. Em meio ao seu cotidiano surgiu um sentimento diferente de tudo que ela viverá: Paixão. Por um menino. Ela se gloriou por isso; gostava de meninos, apenas. "Olha só! Não sou tão problemática assim!". E mais, gostava de apenas um rapaz em especial. "Aiinnn... Ele é clássico, fala baixinho, escreve carta, educado, se veste bem, discreto, cheio de sensibilidade, força e objetivo. " Com esses pensamentos, e sentimento reciproco, o romance começou. Coisa linda, roteiro de novela das 18h. Ela apaixonada, escrevia lindamente pra ele, eles moravam distante e poxa... Aquela novela mexicana de saudades. Mas, Arlete tinha aquela característica lembra? Ás vezes quando se aborrecia de tantas perguntas ela culpava o signo: "Não tenho culpa se nasci sendo de gêmeos!"  

Conheceu um garoto na escola, "Ele é tão imprevisível, divertido, espalhafatoso... Ele dança! Nossa ele sabe jogar vôlei; vai me ensinar cálculos. Ele é muito prático. Engraçado; forte, esportivo..." E aí ela se apaixonou. O problema foi que ela não deixou de estar apaixonada pelo outro. Como pode? 

Ela ficou com os dois, mas a sua consciência falou que era errado... Mentira. Poderia ter sido isso pra história ficar mais bonita, mas o que aconteceu foi que ela só não gostou muito do beijo de um, e também não se sentiu segura porque ele não era discreto e sairia contando pra todo mundo, então resolveu ficar com apenas um. Mesmo sabendo que ela queria os dois. "Não dar pra somar agora, não é mesmo?" 
Anos se passaram e a história se repetia; porém ela nem se dava conta de ser algo com ela em si, afinal havia sentido pra tudo aquilo: Não havia encontrado ainda a tampa da sua panela. 

20 e poucos anos, ela se deparou com algo bem estranho: Estava gostando de dois, novamente, mas o curioso era, não conseguia ver muita diferença entre eles... E agora? Não tinha dilema! Não conseguia comparar; não conseguia ver quem vencia isso, não conseguia escolher, porque... Queria os dois! Poderia somar os dois agora? Seria essa a solução? Achar um que fosse tipo esses dois? Que já são tão parecidos... "Quero a fusão, e estou extremamente confusa com isso!" 

Ela se relacionou com os dois e isso lhe causou problemas internos pelos seus questionamentos sem respostas; foi então que buscou alguém que fosse a soma... E nada. Ela falou com os dois, se ela poderia de repente, ficar com ambos. Eis que veio a pergunta de um deles: "Tudo bem se você, do mesmo modo, não for suficiente pra mim e precisar arranjar outra para completar? Não a mim, no caso, e sim, meu desejo. Ou, completar você que não pode pra mim ser inteira?"

Arlete desmoronou! Em mil pedacinhos a mais... Escutar algo assim? Caiu a ficha e ela toda. Havia um problema! Ela acabou ficando sem os dois rapazes claro, porque não se pode somar os dois pra virar um e depois dois. "Pessoas não se fundem! É isso. Individualidade..." Pensou. Finalmente algo clareou em seu ser. A sua individualidade estava ferida e descoberta. Chorou como uma criança que vem ao mundo não sabendo o porque, mas cheia de sentimentos da sua história vivida e uterina. Chorou por se ver sozinha nisso, na sua estranheza de ter um problema que cresceu com ela e ela nunca tinha visto isso.  Não bastou nomearem, tentarem explicar... Não. Às vezes a gente só entende quando leva um soco no meio do ego desordeiro e infernal que pulsa. Foi aí que ela viu e sentiu, acompanhada de dois gestos (uma mão no coração e outra, na cabeça) falou: "A dualidade está aqui". 


quinta-feira, 2 de abril de 2020

O rapaz dos intervalos

Téo apareceu quando Vanessa estava em um momento de mudanças mais bruscas da vida, quando estava acelerada em um gosto enlouquecedor de viver e pôr em prática alguns devaneios. Foi a primeira vez que ele apareceu. Era virtual. Ela só via escritos dele, algumas fotos (mais dos lugares que ele esteve do que dele mesmo e ao prestar atenção em fotos conceituais (que por si só, já costumam agradá-la) sendo a maioria em preto e branco; ficou curiosa: "Quem se esconde por trás da câmera? E por que lhe falta cor?". 

A conversa fluía entre eles, sempre; desde o início. Entendiam os sarcasmos, as ironias e as bobagens um do outro. Ela se apresentava muito expressiva, sagaz na linguagem, curiosa e mística; ele zoeira, atencioso e sincero. Diante de conversas empolgantes, resolveram se encontrar pessoalmente, sair pra comer.

O primeiro encontro foi do tipo detalhista. A cor das unhas foram notadas, o desgosto por vinagrete na comida dele também, as vozes, o jeito que mexe nas coisas... E como sabiam que estavam sendo observados, se atrapalhavam, entre realidade x expectativa. Queriam mostrar o real, mas até que ponto?

[As vantagens de conhecer alguém sem amigos em comum, é que pode haver um grande perigo ou para os loucos, um grande atiçar de curiosidade, podendo ser também, de criatividade, visto que você pode escolher sobre: "Quem você será hoje? Qual a versão melhor da sua própria história ou, como você quer que ela, fantasiosamente, se pareça?"]

Quando saíram do restaurante ele a abraçou como se fosse se despedir e tentou chegar mais perto para beijá-la, foi então que a garota mudo o roteiro, pois estava muito óbvio a expectativa e ela era um pouco do contra. Ele entendeu prontamente e sugeriu que fossem andando para a casa dela que era um tanto perto, pois assim, teriam mais tempo para conversar, ir caminhando e sem ninguém para atrapalhar o desenrolar da história.

Feito menino e como se fosse pequeno, subiu numa divisória do estacionamento que estavam passando na calçada, ela, mais menina ainda, sentindo-se menor do que já é em estatura, imitou, subiu também, mas ele desceu, e ela quase caiu. Quase, porque ele a segurou. Segurou e dessa vez eles se beijaram. O tempo parou ali, deu pra ver, naquela degustação de um começo bom. Foi ele quem chamou ela de volta: "Vamos. Não podemos ficar aqui assim..." Vanessa como uma "garota bem levada", sorriu e pegou na mão dele para continuarem. Ele expressou o quanto estranho era estar de mãos dadas tão rapidamente com ela, já a moça, pouco estava se importando. Eles conversaram o caminho inteiro, ele a deixou na frente de casa, se abraçaram e se beijaram bastante e foi a partir disso que uma rotina acelerada de paixão começou. 

Com uns dias se passando teve histórias em restaurante, bar, praia a noite, cinema, casa... Era divertido, casual, rir a toa, até que falaram mais sobre as seriedades da vida. Isso assustou, Téo foi indo e ela o deixei ir. Não demorou muito, ela seguiu dando uma continuidade da vida como realmente era: um novo recomeço; pensou: Foi só um rapaz num intervalo. 

Anos se passaram e eles nunca mais se viram pessoalmente, tornou-se virtual de novo. Eles lembravam do que havia acontecido nitidamente com carinho, mas pouco falavam sobre. Passou. Até que chegou um dia em que finalmente resolveram se reencontrar, enfrentar algo; talvez, matar a curiosidade e por em provas a si mesmos. ["Somos só amigos sem mais intenções realmente?] Dessa vez Vanessa convocou e ele aceitou.  

Ao se encontrarem, pareceu comum e estranho se verem, afinal conversavam tanto pelo celular que não parecia ter passado anos. Mas ao mesmo tempo, estavam diferentes, pois os anos dão acabamento em muitas arestas. Foi nítido, o quanto ficavam perto mostrava que queriam um pouco mais. Depois Téo revelou e Vanessa também foi recíproca: Queriam ter se abraçado mais, mas poderia ser estranho querer isso de um amigo virtual.  

Alguns meses se passaram e novamente chegou um tempo em que a vida dele estava em um momento de transição, a dela também e foi então que se esbarraram de novo, nos intervalos. Começou: Restaurante, cinema, casa, bar, casa, casa... O roteiro ficou diferente. Conhecer a família, os amigos, as casas, os receios, os sonhos, não esconder mais o que sente e então foi dessa vez que Vanessa se assustou, alguns princípios dela haviam mudado, pra ele acompanhar, seria se refazer em alguns aspectos e ela não queria que ele pagasse pra ver, pois não era garantia que ela esperaria e realmente se satisfariam; ela se assustou e se deixou ir, pra longe; começando de novo, do mesmo lugar, mas modificada pelo intervalo. 

Voltaram a conversar, virtualmente de novo. Melhor. Duas vezes em pouco tempo de muita realidade, não deu certo. Por que? Porque eu acho que as histórias curtas e intensas a gente deve preservar enquanto está bom. Isso digo eu, partindo do ponto que me coloquei como roteirista. 

Mas posso confessar? Vejo nela saudade dele, hoje. Isso mesmo. Não para se ver pessoalmente, ou algo mais. É coisa dos intervalos mesmo. Ela está em um e ele fica pulsando; contudo, agora com total convicção: Vanessa está com saudade do seu amigo virtual, o rapaz dos intervalos. Na verdade, a vida sempre tem muitos intervalinhos, não é? Ou será que ele passou a ser parte de uma frequência da vida dela e ela não reconhece isso? Ah não sei... Apenas afirmo que ela está com saudades do amigo virtual dela, é isso; e diante do histórico de realidades que foram de amizade colorida, ela vai dar continuidade a virtualidade, por que? Eu já expliquei sobre as pequenas boas histórias. 

"Vou convocá-lo pra gente jogar alguma partida on-line!"