quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Na terapia

- Eu posso iniciar a sessão falando sobre alguns papéis que exerço, pontos focais na minha vida, depois eu vou detalhando. Especificando cada um, pode ser? O que não pode falar em uma sessão de terapia não é mesmo? Pois bem... Vou contar as minhas versões sobre o que vivo; minha forma de ver o mundo com uma liberdade de falar como se já estivesse morta: livre de julgamento com Brás Cubas. 

- Sente-se morta aqui?

- Não... Na verdade não. 

- E por que a alusão?

- Começou bem, doutor... Bem... Deve ser porque ao contar sobre muitas coisas que eu passei, elas falem de alguém que não existe mais propriamente, só os resquícios e alguns atravessamentos. Possa ser também que haja uma espécie de morte para algo reviver. No caso, eu mesma. Possa ser também que morra as minhas versões tradicionais, "adequadas" e tentativa de ser sempre muito coerente e equilibrada. 

- O que a trouxe aqui?

- O desejo pela perturbação. 

- [riso sutil] Então você sente prazer nisso? O que seria a perturbação pra você? 

- Não sinto prazer nisso, sinto prazer quando transformo as porcarias em algo bom. Mas eu tenho que saber do que realmente se trata para transformar. Não se muda o que não sabe que se deve, ou pode mudar. "Até cortas os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito que sustenta o nosso edifício inteiro." Já dizia também, Clarice Lispector. E eu quero saber o que posso transformar.

Eu gosto muito dela. Não da frase em si, mas da escritora; e gosto também de Manoel de Barros. Que "transver o mundo." Inventa palavras e novos significados e contextos. Clarice eu gosto pela subjetividade, pelo olhar importante, por me ver em tantas frases, por me estimular a descobrir o que tem nas entrelinhas. Estou muito referencial de literatura brasileira não é mesmo? Me chegou essas coisas aqui. Pela sua expressão devo continuar falando. Então vou falar o que introduzi. [...]

- É muito interessante não ser julgada. Não verbalmente, nitidamente, por quem agora sabe tanto sobre mim e saberá cada vez mais. Fora você, talvez só Deus e eu saiba tanto. Que liberdade você ser um estranho condutor! As vezes eu queria saber o que realmente você pensa. Quando os clientes me falam de móveis, eu algumas vezes estou pensando tanta coisa para além dos revestimentos; estou pensando sobre eles em si, os discursos. Tem dias também, que comento na minha cabeça. E você também deve falar isso consigo. Alguns adjetivos... O oculto e mistério me atrai. Eu queria saber algumas coisas do que passa na sua cabeça como "comentador". Mas isso custaria a minha liberdade de falar tanto... Pontua pra mim. 

- Pontua? Você quer encerrar já? 

- Não. Nem todo ponto é final, né? 

- Sim... 

- Eu gosto de reticências. Tem uma tatuagem que é um ponto e vírgula para dar alusão a continuidade da vida; contra suicídio, coisa do tipo. Mas as reticencias me atraem mais. É a fala cantada, arrastada do nordeste, é o pensamento no ar, ou processo dele; a continuidade mesmo. Eu gosto disso. Já faz semanas que eu venho aqui e parece que não vai ter fim. Falante demais. Tem horas que canso dessa centralização. Há uma linha tênue na análise, entre o encontro consigo, o foco em si mesmo e o egoísmo. Eu gostaria de mudar algumas coisas pra viver no coletivo, em relação aos outros. Eu comigo mesma me dou muito bem (risos) gosto da minha companhia, das minhas formações, de quem sou. A vida é boa, mas tão cansativa. Tem momento aqui esse "foco em mim" me cansa. Falar... Falar... Tornar monstros mais reais pra destrui-los.

- Você sente que podemos encerrar o tratamento? 

- É difícil isso também. Por que você é um encontro marcado comigo mesma; me estimula, me encoraja a enfrentar, a me permitir enxergar... Mas estou querendo ficar quieta sabe? Parece que agora estou procurando problemas. E a vida não é só isso. Eu acho. Encontra problemas e resolve, encontra significados e ressignifica, encontra a origem e tira ou planta melhor na raiz, tem vezes que pensar cansa,doutor. Questionar tanto. Tem coisas que você sente e precisa apenas ter consciência do que sente com aqueles estímulos. E filtrar. "Sinto-me" bem e então faz mais disso. Vive mais isso... Não quero encerrar ainda. Tão abruptamente. Mas isso é um aviso prévio que partirei. Irei indo... Entende? Claro que entende. 

- E por que não agora?

- Você me liberaria? (risos) Por que não quero deixar de vê-lo ainda. 

- Fale mais sobre isso (risos). 

- Eu gosto do que essa expressão típica de vocês permite (risos). Mas queria perguntar três coisas sobre você que não seja invasiva. Posso?

- É importante pra você? 

- Acho que sim. 

- Por quê?

- Porque você se torna mais real. Saber algo que vem de você em si e é da sua realidade mesmo. Não só do que eu imagino. 

- Você fica imaginando coisas sobre mim? Que tipo de coisa lhe vem?

- Eu vou poder perguntar três coisas? 

- Pode. Sabendo que eu escolho se vou responder. 

- Vou também escolher não responder sua pergunta sobre o que imagino, agora. 

- (risos) Tudo bem. 

- Você joga videogame? 

- [Expressão de espanto e riso] Sim.

- [Sorriso singelo] Bom... 

- Por que quis saber sobre isso?

- Porque... É algo diferente demais imaginar sobre você. 

- E o que minha resposta lhe causou?

- Sorriso. Você viu... A gente se ver na próxima sessão. 

- (Risos) Você a encerra? Achava que você queria saber três coisas.

- Sim. Mas não tudo hoje. Deixa eu me deleitar nessa agora. E sim, eu encerro por hoje (risos).

- Tudo bem. 

- Até a próxima! 

- Até.