quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Uma gata de rua

Me restam 10 minutos. O que se faz em 10 minutos quando você pensa que dispensou anos da sua vida? O que são míseros 10 minutos? Por que eu resolvi fazer algo nesses 10 minutos? É que eu suspeito e receio, aliás temo muito que quando eu receber aqueles exames, cada minuto será mais importante, bem mais! E de repente me bateu um desespero como um pedido de socorro de mim mesma para a vida, não partir sem... Não sei. Já se passaram 3 minutos.

Espero que a internet esteja boa. Para onde eu preciso ir antes de ir para o além?... Para onde eu quero ir? Acho que posso ousar com tanta grana que juntei para minha estabilidade, para tantos boletos que ainda nem fiz, para as tais emergências, essa é uma emergência: ser feliz! Onde... Onde... Cartagena! Não conheço ninguém de lá, nunca precisei falar outra língua e é lá que vou praticar, saber um pouco de sua cultura, não é muito longe daqui; vou tirar fotos daqueles prédios coloridos maravilhosos e aproveitar as praias paradisíacas. Fotos? Pra quê? Cartagena. Uma semana. Hotel... Esse já está bom.

Ainda me restam alguns minutos... Orar:

- Deus, minha vida está sem sentido (e eu preciso de muitos); perdão por tantos maus feitos; me permita viver por enquanto, aqui na terra mesmo, porque eu acho que tenho muito a aprender ainda. Deixa eu encontrar essa vivência que as pessoas tem e conseguem de todo coração dizer que tu és "bom o tempo todo". Sentir umas coisas e preenchimentos e felicidades que vem de ti. Vivem dizendo que você é amor. O amor pode me amar estraçalhada assim? Dizem que sim... Vou acreditar ao menos dessa vez e ver se tu é capaz disso mesmo. Eu me converto. Me aceita, por favor. Amém. 

Alguns poucos minutos... Ele não sabe que o amo. Eu me contive por sempre ser escrota. Não me acho digna dele. Imatura. Eu fugi quando ele mais me queria e eu também, porque não acreditava que aquilo poderia ser verdade. A minha família se relaciona de uma forma... Cheias de porcarias! Eu não tenho boas referências e aprendi a ser ruim, por defesa, a não ficar com um homem só, mas a usá-los. A ter vários... De várias tamanhos e cores, meus brinquedos, no meu jogo infinito de vício em sedução, em exploração, em ser bem sucedida no trabalho, independente e a noite, beber um whisky caro, colocar um vestido colado para valorizar as minhas horas gastas em procedimentos cirúrgicos, estéticos e academia; sair e acabar com outros relacionamentos, colocar em questão o amor alheio, só pra provar que se não existe para mim, não deve ter pra ninguém. Só pra provar que um cigarro é mais charmoso que pulmões limpos, quem se importa com o que existe por dentro mesmo?

Sair e provar pra todos que eu posso ter o que quiser com ousadia, com atitude, com algumas palavras que alimentem egos; com a solução para as fraquezas atraio as presas, vãs palavras de compreensão e acolhimento para conseguir o que quero, usufruir do que é bom do outro. Poder; por meio daquilo que as pessoas tem de ruim em si: Suas ganâncias, suas carências, suas carnes. Pois é, mas eu não consegui provar nada disso com  ele, o Elis!

Ah, o Elis... Ele falava em graça, diante da desgraça que é minha vida. Que pelo amor, pela graça eu seria salva. Achei baboseira porque sempre fui salva por eu mesma. Contudo, somente ele tinha esse dom: me puxar para ser salva de mim mesma. Eu tive medo da mudança, de me estranhar e me perder;  perder as referências e não saber mesmo quem sou. Porque, hoje eu sei o que sou! Sou ruim é isso. Dissimulada, independente, gananciosa, ousada, vingativa, fria, desconfiada, investigativa, suave e firme no caminhar, um gato de rua ou, uma gata de rua. 

O vislumbre da morte, me trouxe o desespero; receio aquilo que não tenho controle. Pra onde eu vou depois que eu... for? Eu amo isso aqui! Os prazeres mesmo diante das desgraças que tenho. Eu não sei morrer. E se for pra morrer agora, quero que morra essa minha versão.

Darei credito ao bom, a Elis; a esse mundo que ele enxerga mesmo estando aqui, nesse caos de terra. Darei credito a esse Deus, porque se ele diz que aprendeu o que tem de bom com esse Deus, Ele deve ser lindo. Deve ser um óculos bom de se colocar, um professor bom de ter, um revolucionário para mudar essa sujeira toda que temos, certamente. Ele tem que ser muito bom, mas muito bom mesmo! E como ser bom e não ser besta? Quase não desassocio, mas por amor a vida, que é a única coisa que amo e a Elis que me desafia, que em atrai porque desconheço a lógica de alguém ser como ele é, por esse sentimento que ouso chamar de amor [porque deve ser], vou enviar mensagens das coisas bonitas que ele desperta e falarei também do quanto difícil é falar sobre isso. Ele me responderá, nem que seja me reprendendo, me beijando. (...) Mensagem enviada, recebida, visualizada.

[Por que deve ser amor? Eu penso nele todos os dias, é a única pessoa que consegue me incomodar e me confortar ao mesmo tempo; é a única pessoa que desejo até a alma, mas sem querer sugar, quero preservá-lo assim, bom... E cuidar... E... umas coisas bonitas aparecem em mim, pensamentos poéticos, uma apreciação a música romântica, a querer uma família, uns absurdos para minha lógica, ao que sempre fui. Ele me faz querer mudar, e apesar de tanto medo, talvez possa ser bom. Permitir amar. E se não der certo essa historinha toda... Morrerei feito gata de rua. Depois de sete vidas, eu que pareço invencível, morrerei de forma ruim, pagando pelo que fui antes.] 

Conta-se 6 dias que não fui respondida. Cada dia morro mais... Morro mais em Cartagena. Lindamente, em Cartagena. Convertida, em Cartagena! Não correspondida... Vivendo só em planos de fundos culturais e paradisíacos; eu Luíza de Helena, sem reluzir nada. 

O celular está tocando e é um número do Brasil que não conheço! Será que é ele?

- Alô!
- Sra Luíza Helena de Almeida?
- Sim, quem fala?
- Falo em nome da Clínica Mário Cavalvante, tudo bom? O seu médico, Dr. Roberto, gostaria de marcar um retorno urgente com a senhora. Pediu para que de antemão eu também informasse a senhora, que são boas notícias.  
- Boas notícias? Estou em outro país. Voltarei em 3 dias. Não tem como adiantar isso aí? 
- Não senhora, ele quer encontra-lá pessoalmente. 
- Ok. Quando voltar irei. Obrigada! 
- Por nada. Tenha um bom dia. 

Que coisa! Não mereço uma resposta... Eu não tenho nem para quem ligar. Não lembro dos meus pais biológicos, a Soraya que me criou naquele trailer horroroso se foi e minha vida hoje é tão melhor longe das pessoas daquela região! Tenho tudo! De alta quidade... Só falta amigas; não tenho pra quem ligar mesmo.

Dias se passaram aqui e eu percebi que as maravilhas das bebidas, dos cigarros, dos deuses gregos, dos lugares, das compras, dos filmes, de nada estão valendo ou fazendo sentido agora, na verdade desde que comecei a ficar, aliás me sentir doente, que já não fazem. A maravilha foi ter uma boa noite de sono, sozinha. Na real mesmo? Tudo isso nunca fez muito sentido, mas sempre foi melhor que viver me iludindo em busca de caras bons, em família de comercial de margarina e acreditando nos filmes bobos que me fazem (sim) chorar. 

Preciso dizer que estou morrendo, mas o Elis nem ao menos falou algo pra que eu pudesse introduzir esse assunto. Silêncio, recebi silêncio. Hora de ir pra casa e saber das boas notícias. Talvez, um remédio que não vá cair o cabelo? Triste. Minh'alma se encontra inteiramente triste, confesso, porque não terei muito tempo de vida, porque minha vida tão amada por mim, não tem lá um bom gosto quando olhada de muito perto. Sempre houve um buraco. E agora tem um no meu estômago e células malucas querendo criar mais vida, exageradas como eu mesma, querendo tanto viver, causando a morte. 

[Já na clínica.] 

- Sra Luiza Helena de Almeida, o Dr. Roberto aguarda a semhora em sua sala.

E lá vou eu, me dirigindo a porta com meu humor abaixo dos meus calos.

- Boa tarde, Dr. Pois não... Conte essas tais boas notícias. 
- Boa tarde, Luiza. Sente-se fique a vontade. 
- Obrigada. 
- Eu gostaria de pedir imensas desculpas, em nome da Clínica, pelo ocorrido; os resultados dos seu exames foram trocados. Espero que a senhora receba isso da melhor forma.
- Como assim trocados? Me restam menos tempo ainda? É pior?? O que eu tenho??
- Um bebê. Você tem um bebê no seu ventre. Apenas. 
- Um bebê...? 
- Sim. O que você tem na sua barriga não é para causar morte. Você está gerando uma vida; uma nova vida pra você. 
- Deus... Você tem certeza? Conferiu a minha ficha? Não é mais um erro? 
- Não (risos), a menos que esse bebê seja um erro pra você.
- Não sei. Quer dizer... Eu nunca pensei em julgar uma pessoa que ainda está sendo formada. Em mim! Em mim, neh? A quanto tempo isso? 
- Três meses. Ou melhor, 12 semanas. 
- Então todos aqueles sintomas horríveis... Eram isso?
- Sim. 
- Nossa... E agora?
- (Risos) Agora vou te encaminhar e indicar médicos da área. Seu acompanhamento será com pediatras.
- Ah. Ok. Vocês me fizeram sentir que eu iria morrer logo, sabia?! Sabia, claro! Foram os dias mais tristes da minha vida e eu nunca coloquei tantas cartas na mesa pra mim mesma! E eu não estou conseguindo ter raiva imensa de vocês para processá-los porque não estou sabendo lidar com isso agora. Eu estou muito confusa! Extremamente confusa... Inferno. Ou melhor, céus... 
- Eu entendo. E não sei como podemos nos retratar. Mas é isso.
- Ok. Posso ir agora? 
- Aguarda só eu fazer o encaminhamento?
- Certo.

[...]

O que eu vou fazer com uma criança? E eu não sei nem com quem eu a fiz! [Celular chamando] É ele! Ah... Finalmente!

-Alô...
-Oi... Como você está? Chegou de viagem?
- Ah, sim... Estou um tanto melhor, eu acho.
- A viagem fez bem, então?
- A volta foi melhor.
- Pelo quê?
- Por que eu tenho algo que vai me forçar a cuidar mais de mim inicialmente, ser uma pessoa melhor, por mim mesma e por outra pessoa.
- Alguém?
- É.
- Humm... Então se resolveu com outro? Eu não sei porque liguei pra você. Decepcionante!
- Mas não é um cara!
- Variando agora, só o que faltava mesmo. Eu desisto de você. Na verdade, eu acho que já desisti faz tempo. Liguei apenas para não ficar com um peso na consciência ao ir para igreja. Adeus... Faça um favor a mim de sumir!
- Mas...
[Desligou]

Minhas mãos ficaram pequenas para cobrir a minha vergonha, eu precisava me esconder inteira, no caso, o corpo todo, porque eu mesma já estava estraçalhada. As lágrimas desciam como se minha cabeça estivesse anuviada e pesada... Gotas e mais gotas de uma tempestade em soluços. Me vi, morrendo de novo. Com a vida escassa, nível baixo. Esse ser não teria a força de fazer o tal sentido agora, da minha vida? Na real, eu poderia morrer agora mesmo, porque o caos me atormenta do início ao fim de mim; cinza. Parada enfrente a uma loja de conveniências; eu inconveniente nessa vida, nem um chocolate barato estava valendo.

- Moça...

Falará um rapaz de timbre leve, pouco rouco e eu com os olhos exarcados, quando ouvi, tentei abri-lós para espiar por entre os dedos, caiu gotas enormes que estavam guardadas entre as pálpebras pressionadas. Tudo turvo. Pensei: Devo estar com minha pior cara; um tomate amassado; ele prosseguiu:

- Posso ajudá-la?

Eu soluçava... E me recolhia mais como se coubesse toda nas minhas próprias mãos. Sim eu sentei, numa espécie de mureta, feita para qualquer coisa, que agora servia bem para me apoiar e não cair. Eu só chorava, mas tentando me conter pra ser baixinho. Entrei em um luto, de uma dor forte. Estava eu perdida! Morta de mim. Como uma criança que só sabe chorar, sem saber como é o mundo e o que realmente quer. A dor da falta e das lacunas, por ora, inexplicáveis.

- Tome; é água. Eu ainda nem abri, você pode ficar com ela.

Peguei o casaco que havia escorado na alça da bolsa, enxuguei o que podia das lágrima no meu rosto e pescoço, depois o fitei.

Alto, negro, jovem, cabelo trançado baixinho, roupas coloridas e esportivas... E um sorriso tímido, mas acolhedor. Aceitei a garrafa e agradeci (esperando que ele fizesse leitura labial e tivesse entendido). Ele sorriu com mais afeto, então entendeu, e disse:

- Hora de você se cuidar. Se hidrate. Levante, agradeça o que Deus te deu. Ele estará contigo até o fim dos tempos e te ensinará como amar essa mudança. Bem vinda de volta. Maktub, moça... 

Eu o ouvi perplexa. Não consegui chorar, houve uma pausa no tempo, eu singela sorri. Ele se baixou, pegou um skate, posicionou e saiu passeando na rua; e eu fiquei olhando pra ele até não conseguir mais alcançá-lo.